"O Zé Povinho hoje é o eleitor que se abstém"
Existe, na verdade, um mistério em torno da data do aparecimento da figura de Zé Povinho, como lembrou ontem o diretor do Museu Bordalo Pinheiro, João Alpuim Botelho, na "Tertúlia Manguito... um gesto bem português". O N.º5 da 'Lanterna Mágica' data de 19 de junho de 1875, contudo, a data correta deverá ser a de 12 de junho (noite de Santo António), visto que também o N.º 6 da revista surge com a data de dia 19.
Este facto é reforçado pelo próprio desenho de Bordalo Pinheiro, onde o então ministro das Finanças, António Fontes Pereira de Melo, pede esmola ao tosco Zé Povinho ("Seu Zé Povinho", lê-se nas suas calças), apontando para o Santo António. Por baixo, a legenda diz: "-P'ra cêra do Sant'Antó..."
A "Tertúlia Manguito... um gesto bem português", que teve lugar ontem à noite no Museu Bordalo Pinheiro, em Lisboa, para assinalar o aniversário da popular figura, tinha um foco bem específico: uma discussão em torno do gesto vernacular que caracteriza Zé Povinho (embora só surja em cerâmica, nunca em desenho), o manguito. Se o gesto, que evoca formas de conotação sexual, é visto com bastante frequência, muito poucas vezes é discutido ou sequer nomeado: esta parecia ser a opinião geral de ontem à noite.
"O Zé Povinho é um falso parvo. O Zé Povinho hoje é o eleitor que se abstém, porque faz um manguito aos partidos.", dizia o jornalista António Costa Santos. O jornalista recordou ainda o famoso hábito do ator Vasco Santana, "curiosamente parecido com o Zé Povinho, fisicamente", que tinha uma gaveta vazia no camarim para onde atirava manguitos. "Quando entrava alguém de quem não gostava, bastava-lhe abrir a gaveta para os manguitos saírem", contava Costa Santos, que ainda lançou: "Fica a ideia para quem não tem coragem ou oportunidade de fazer manguitos." Num quase manguito, o jornalista não deixou de relembrar o regime de voluntariado dos oradores,"uma coisa que se está a tornar tão portuguesa como a loiça das caldas."
João Medina, catedrático jubilado de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, descreveu a figura criada por Bordalo Pinheiro, "o rural, homem do campo, barba rude, chapéu braguês", como um "totem nacional, um emblema português". Chamou também a atenção para o facto de o nome Zé Povinho constituir um duplo diminutivo, o Zé, 'muito cá de casa', dir-se-ia, e o Povinho, crítica ao facto de o eleitor não ser soberano e, como tal, "não é povo, é povinho".
O professor chamou ainda a atenção para a história contada por Desmond Morris no livro Gestures, their origin and distribution (1979) onde este diz ter assistido, num bordel do Japão, ao referido gesto. Confrontadas por Morris, as gueixas terão dito que aquele era um gesto bastante antigo, trazido pelos navegadores portugueses.
Isabel Galhano, professora de Linguística da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, lembrou o filme Babel (2006), de Alejandro González Iñárritu, onde uma rapariga japonesa surge a fazer o mesmo gesto.